A Do fundo da gaveta de hoje resgata mais um texto produzido há quatro anos, desta vez a oito mãos, em parceria com os colegas jornalistas Felipe Ribeiro, Guilherme Mattar e Leonardo Müller. Uma entrevista com o paranaense Narciso Pires, coordenador do projeto "Resistir É Preciso" do grupo Tortura Nunca Mais.
Segue a íntegra da entrevista em ping pong, escrita originalmente em 14 de junho de 2011, e mais uma vez revisada pelo mestre José Carlos Fernandes. Para você que não leu o primeiro post da seção, clique aqui.
Vale lembrar que a entrevista foi realizada antes dos desdobramentos e do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
"A sociedade é perversa, desigual, racista e homofóbica. Por combater isso, a luta pelos direitos humanos não pode parar"
Cláudio Narciso Pires sempre se interessou por política e cultura. Indignado com as misérias do mundo, há mais de 45 anos atua como militante. Natural de Cornélio Procópio e criado em Apucarana, ambas do interior paranaense, Narciso nasceu em 8 de outubro de 1949.
Em sua trajetória, passou pela faculdade de Jornalismo da UFPR (Universidade Federal do Paraná), foi líder estudantil, se formou em Letras, deu aulas, foi preso político e enfrentou a tortura da repressão militar dos anos de chumbo.
De todos os papeis que Narciso Pires experimentou na vida, o que mais prosperou foi o de resistente ao regime militar. Ele o é até hoje – à frente do grupo Tortura Nunca Mais do Paraná. Aposentado, coordena o projeto “Resistir É Preciso” e faz parte da Banda Humanos Vermelhos.
Narciso explica que os grupos do Tortura Nunca Mais pelo país não têm uma ligação organizacional, apenas ideológica. "Cada um faz sua atuação independente. Estamos com o projeto de percorrer o Brasil inteiro, levando nossa palestra musical e as oficinas de direitos humanos, para discutir as demandas da população fora do Paraná. Também queremos criar o Comitê Brasileiro pela Terra e Pela Vida, para abrir discussões sobre a noção de progresso hoje", comenta.
Como o surgiu o interesse por política e pela militância dos direitos humanos?
Narciso Pires – A tomada de consciência foi natural, uma indignação pessoal com as misérias do mundo, quando tinha 16 anos. Ainda não era uma militância, e sim uma disposição a participar de alguma coisa. Em 1967, formamos o Clube Cultural de Apucarana. Foi através das leituras e dos debates no Clube Cultural que começou a despertar a militância. Aí a coisa aflorou mesmo em 1968.
Como sua família lidava com isso, na época?
Pires – Não havia resistência familiar nenhuma, pelo contrário. Até porque ninguém imaginava o que aquilo poderia gerar de consequência. Repressão era uma coisa impensável até então...
Os anos de universidade foram turbulentos para a militância?
Pires – Bastante. Quando vim para Curitiba, em 1970, comecei a fazer Jornalismo na UFPR, na Reitoria. Mas só fiz um ano de curso. Naquela época eles prendiam tudo o que era presidente de centro acadêmico, ainda mais no meu caso, que já tinha sido presidente da União dos Estudantes de Apucarana, em 1968. Tive que ir para a clandestinidade e nunca terminei Jornalismo. Fiz Letras, depois, e dei aulas em Mamborê por três anos, quando estava “exilado” no interior do Paraná, de 1971 a 1974.
O exílio funcionou?
Pires – Até certo momento, sim. Em Curitiba, devido ao meu histórico, fui preso pela primeira vez em 1970. Era do Partido Operário Comunista, do pessoal de Filosofia de Apucarana, e foi isso que fez eles me prenderem, mesmo sem ter evidência nenhuma contra mim. Fiquei 15 dias e fui bem tratado, porque um capitão de lá conhecia meu pai de Apucarana, coisa que eu nem fazia ideia. Mas isso só me “salvou” dessa vez...
O que aconteceu nas outras prisões?
Pires – Além dessa, fui preso mais cinco vezes, entre 1970 e 1982. O pior foi em 1975, quando estava na clandestinidade e torturaram meu irmão para que eu me entregasse. Ameaçaram toda minha família. Me levaram pro Presídio do Ahú, onde fiquei dois anos. Foi quando me torturaram. Talvez eu tenha sido menos torturado do que muita gente por aí. Por isso não faço o discurso “eu aguentei”. Teve gente que sofreu mais.
Seus companheiros de partido também foram presos?
Pires – Ao todo, 65 companheiros foram presos durante a ditadura, de vários grupos que participei. Eu sempre era o último que prendiam, o que comprova que nunca abri a boca para entregar ninguém. Mas tive dois colegas de Apucarana, o Três Reis e o Zé Idésio, que foram para São Paulo e morreram nas mãos da repressão.
“O pior foi em 1975, quando estava na clandestinidade e torturaram meu irmão para que eu me entregasse.”
E as manifestações de rua, como foram?
Pires – Depois dos anos de chumbo, nós fomos os primeiros que puxamos manifestações de rua contra a ditadura militar. Nós ousamos ir para a rua, e logo depois de sair da cadeia. Em 1977, me soltaram do Ahú. Oito meses depois, eu já comandava as manifestações. Também fui membro do Comitê Brasileiro pela Anistia, e ajudei a organizar a passeata pelas Diretas Já em Curitiba, na Boca Maldita, a primeira do Brasil.
Prisão do Ahú: sentados, Ildeu Manso Vieira, Narciso Pires e Diogo Afonso Gimenes. Em pé, Osiris Boscardin Pinto, Mario Siqueira e Antonio Brito Lopes |
Há expectativas para a abertura dos arquivos da ditadura?
Pires – A ditadura é uma mancha que deve ser apagada da nossa história, mas não deve ser escondida. Uma mancha você mostra, para que o país aprenda sobre os crimes que sua sociedade comete. O Rui Barbosa, quando era ministro da Justiça, incinerou 400 anos de arquivos da escravidão. Eram documentos necessários para que os historiadores desconstruíssem o Brasil, acabando com essa falsa ideia de sermos um país cordial.
O senhor vê o Brasil como um país hipócrita, nesse sentido?
Pires – Certamente. Somos um país violento e hipócrita, que se esconde por detrás de uma máscara de “igualdade entre raças, sexos e credos”. A sociedade é perversa, desigual, racista e homofóbica. Por combater isso é que a luta pelos direitos humanos não pode parar.
Como funciona o Projeto Resistir É Preciso?
Pires – É o maior projeto de Direitos Humanos do Brasil. Ele trabalha o resgate da memória histórica, e as demandas atuais dos direitos humanos. Somos totalmente apartidários, não porque os partidos sejam ruins, mas porque eles “partem”, e nós buscamos união.
“A ditadura é uma mancha que deve ser apagada da nossa história, mas não deve ser escondida.”
A Banda Humanos Vermelhos surgiu para o projeto, ou já existia?
Pires – Não, nós a criamos ela para divulgar nossos trabalhos do projeto. Surgiu como uma ferramenta, mas hoje ela que nos abre as portas. Eu ajudo nas composições, canto e toco violão, sem nunca ter feito isso antes. Faço o que posso para ajudar.
A juventude de hoje é menos engajada que antes?
Pires – Juventude é juventude, ontem, hoje e sempre. Os jovens são generosos e dispostos. Não acho que os jovens de hoje são menos engajados, é que existem outros grupos que mobilizam a sociedade. A geração de 1968 só era impulsionada pelos estudantes, sem outros grupos organizados. Essa é a diferença. Devemos sempre nos fazer a seguinte pergunta: “o que eu estou fazendo para melhorar o mundo?”. E isso não é fazer favor a ninguém, é nossa obrigação.
PS: Em 2013, para outra disciplina do curso de Jornalismo da UFPR, voltei a entrevistar Narciso Pires, desta vez falando sobre os trabalhos da Comissão da Verdade. Em duas partes:
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