segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cinema: Ponte dos Espiões

Somos apresentados ao russo Rudolf Abel (Mark Rylance, de O Franco Atirador) de forma sutil: um artista que se olha no espelho para pintar um autorretrato. Um homem de múltiplas faces nos encarando, ora no espelho, ora no quadro. Um espião. Sua estoicidade e calma quando é detido pela polícia americana demonstram que aquele, além de ser "um bom soldado" - conforme definição feita por um personagem posteriormente -, é alguém determinado e preparado para o que quer que possa lhe acontecer. Por que Abel não fica nervoso? "Isso ajudaria?", responde em mais de um momento de Ponte dos Espiões, novo longa de Steven Spielberg.


Com roteiro escrito a seis mãos por Matt Charman e os Irmãos Coen - gabaritados para a tarefa desde Fargo - o filme é baseado no romance homônimo de Giles Whittell e no famoso incidente histórico com o avião U-2, em 1960, auge da Guerra Fria e da paranoia de caça aos comunistas nos EUA.


Brilhante como de costume, Tom Hanks dá vida ao advogado James B. Donovan que, mesmo especializado em direito de seguros, é incumbido por sua firma de advogados para defender Abel, o espião soviético capturado pelo governo e odiado pela opinião pública. Idôneo em suas convicções, Donovan acaba indo além na defesa de Abel, não deixando por menos as apelações e recursos a que seu cliente tem direito, mesmo enfrentando a oposição de todos a sua volta, inclusive sua família.


A sacada de mestre de Donovan, como um experiente negociador de seguros, é conseguir que o espião soviético seja mantido preso - e não executado numa cadeira elétrica - caso haja um americano na mesma situação na URSS, para uma troca em que ambas as partes saiam ganhando (ou perdendo menos). 
Dito e feito. Capturado enquanto sobrevoava instalações soviéticas em um avião U-2, o inseguro piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell, de Whiplash) acaba sendo o "salvo conduto" para o carismático Abel voltar para casa. Após se provar habilidoso em negociações, Donovan é encarregado pela CIA a realizar a troca de prisioneiros em Berlim, recém separada com o muro erguido pelo lado oriental.

Com passagens elegantes e críticas indiretas tanto ao sistema norte-americano, quanto ao soviético, Ponte dos Espiões é um sopro de qualidade na filmografia recente de Spielberg, que não acertava a mão desde As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne (2011) - Lincoln e Cavalo de Guerra têm suas qualidades, mas não são filmes marcantes no conjunto da obra do diretor.


Sobre as críticas, duas cenas são emblemáticas: após jurarem lealdade à bandeira e aos ideais civilizatórios dos EUA, a "grande nação do ocidente", a cena das crianças em sala de aula é substituída pela explosão da bomba atômica no Japão, em um vídeo didático sobre os perigos de uma guerra nuclear. Realmente, um país pacífico e civilizado...


Já a indireta ao sistema soviético, entre outras passagens, vem da sequência em que Donovan aguarda ser atendido por um representante da Alemanha Oriental, e vê passando assistentes de bicicletas para carregar os memorandos pouco úteis daquela forma de governo. Fora o telefone que toca e faz o próprio burocrata se confundir, já que possui dois aparelhos em sua mesa...
Com atuações na medida - destaques para Hanks e Rylance (que também assina o figurino do longa), cordiais e respeitosos "amigos", mesmo em meio a tudo que os cerca - e uma trilha sonora que não sucumbe ao sentimentalismo exagerado (a maior falha de Cavalo de Guerra, diga-se), Ponte dos Espiões é uma obra bem-vinda sobre a Guerra Fria, que parece ser o novo filão do cinema após o esgotamento das produções sobre nazismo e Segunda Guerra Mundial.

Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, 2015)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Matt Charman, Joel e Ethan Coen
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Austin Stowell e Amy Ryan
Nota: 4/5

Um comentário:

  1. Ótimo filme! Ponte dos Espiões marca o retorno de Steven Spielberg à boa forma e ao modo mais gostoso de se fazer cinema: com criatividade e amor pela arte. Como sempre, Hanks traz sutilezas em sua atuação. O personagem nos cativa, provoca empatia imediata graças a naturalidade do talento do ator para trazer Donovan à vida. Mark Rylance (do óptimo Novo Filme Dunkirk ) faz um Rudolf Abel que não se permite em momento algum sair da personagem ambígua que lhe é proposta, ocasionando uma performance magistral, à prova de qualquer aforismo sentimental que pudesse atrapalhá- lo em seu trabalho, sem deixar de lado um comportamento espirituoso e muito carismático. O trabalho de cores, em que predominam o cinza e o grafite, salienta a dubiedade do caráter geral do mundo. Ponte dos Espiões levanta uma questão muito importante: a necessidade de se fazer a coisa certa, mesmo sabendo que isso vai contra interesses políticos ou de algum grupo dominante. A história aqui contada é baseada em fatos reais, mas remete também ao caso recente do ex-administrador de sistemas da CIA que denunciou o esquema de espionagem do governo americano em 2013 e foi tratado como um traidor, mesmo que tenha tido a atitude correta. É uma crítica clara à hipocrisia norte-americana, que trabalha sempre com dois pesos e duas medidas em se tratando de assuntos como esse.

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